19 anos depois...

A nossa vida empacotada em 240 caixas:



Um golpe baixo

Estava eu recem aterrizada no pais da Maple Tree, ainda habituando-me a trocar o chip do espanhol para o ingles, quando chega a minha vez na fila da imigracao. A senhora era uma loiraca, olhos azuis e dentes brancos. Pergunta-me, seca como so ela:
- O que a traz ao Canada?
Eu esboco um sorriso amigavel e respondo-lhe que vim de ferias.
- Sozinha?
Sorrio e aceno com a cabeca, mostrando-lhe o meu ar previamente ensaiado de "mulher-confiante-e-independete-que-nao-precisa-de-mais-ninguem-para-se-divertir". O look evidentemente nao conveceu e ela levantou uma sobrancelha:
- O que faz uma rapariga sozinha de ferias no Canda?
Claramente ofendida, respondo com um ar pouco convincente:
- Turismo?
Ao que esta rebota imediatamente, qual episodio de West Wing:
- E reservas de hoteis, onde estao?
- Oh I'm a backpacker.... - justifico com ar de pobre coitada.
Ela, desconcertada, resolve apelar para o lado emocional:
- Mas ouca la, porque e que voce esta sozinha? Nao tem amigos... namorado...?
Autch, golpe baixo. Quando ate a senhora-mal-amada da imigracao insinua que estamos ecalhadas e que a coisa esta mesmo a ficar preta.
Proximo passo: comprar sininhos para a coleira do gato.
Aguardem-me.

A maquina viajante

Quando aquilo aconteceu senti que todos os sinais vitais do meu corpo se congelavam. Fui causa e presenca da perda da unica prova material daquilo que as nossas palavras ja cansaram de contar. Morria, naquele momento, uma parte da minha historia.
- Como e pessima a tua maquina fotografica!
- Eu sei, mas eu amo-a. Comprei-a no interrail...
Entao ai comecava a lenga-lenga de uma batalha passada. As descripcoes daquela tarde de cerveja, dos piratas, dos brindes, dos amigos chilenos e da desaparicao. Da busca tosca e falida, do comboio, da senhora que me limpou as lagrimas. Da depressao pos-perda e da decisao:
- Ola, bom dia, queria comprar uma maquina fotografica.
- Certo, e qual seria?
- A mais barata.
Esse era o dia 2 daquela que viria a ser a viagem da minha vida. Uma maquina fotografica roubada nao estragaria este momento. Foi assim que 600 toscos fotogramas de qualidade media-baixa registaram esta aventura. A partir desse mochilao, o nosso grupo passou de quatro a dois. Mas nos resistemos. Eu e ela. Sobrivivemos entre flashes, fotos queimadas, cliques e destinos surpresa. Ate ao dia. O dia em que uma queda fatidica deu fim a visao da minha companheira de viagem. Ela agora ve tudo assim, escuro, embaciado, difuso, espelho daquilo que o nosso grupo indestrutivel passou agora a ser.
Dois anos depois, a minha maquina viajante morreu numa manha de sabado solarenga durante um mochilao pelo Canada.
Uma morte digna. Que deixara saudade.

Urso

Ontem subimos a montanha para fazer uma "escalada assassina". O meu irmao queria fazer um percurso que na sua descripcao dizia 'you may die'. Eu queria fazer aquele que fazem os avozinhos. Fizemos um meio termo e reclamamos os dois. Eu, porque me doia o joelho. Ele, porque nao havia nem ursos nem alces.
No caminho de volta vimos um urso. Grande, preto, assustador. Rosnou-nos com todos os seus dentes e o Le defendeu-me e salvou-me a vida aplicando-lhe um golpe de Muay thai. Ra!! Ou pelo menos essa sera a versao que contaremos ate ao fim da nossa existencia. O dia em que lutamos contra um urso de verdade e que o Muay thai salvou a nossa vida.
Comeca assim mais uma lenda da familia Big Fish.

No Canada:

- Nao ha acentos.
- A Coca Cola e mais barata que a agua.
- Chove. Chove muito.
- Os bares fecham as 2 da manha.
- A comida tipica vende-se nas lojas de fast-food.
- Ha velhos tatuados de cabelo comprido, miudos de cabelo verde a andar de skate. Punks, goticos e tios a andar pela mesma rua.
- Em Vancouver quase metade da populacao e asiatica.
- Sinto-me nos Estados Unidos.
- Disseram-me pela primeira vez "abut" (about)
- Os bares servem cerveja caseira. (forte)
- Ha totens por todas as partes. E o meu irmao tira fotos com todos.
- Quase fui atacada por um cisne.
- Pedi uma Coca Cola numa Casa de cha. Olharam-me com cara de: sai daqui sua capitalista urbana.
- Ainda nao vi alses, nem ursos, nem neve.
- Continuo viva.
- Por enquanto.

Ponto de interrogação

Da última vez que o meu irmão viajou, descobriu a meio da viagem que o cartão de credito não funcionava e ficou vários dias retido no meio da selva da América central esperando que a minha mãe, desde Portugal, arranjasse uma maneira milagrosa de mandar-lhe dinheiro. Da vez anterior, roubaram-lhe o bilhete de interrail e teve de voltar para casa mais cedo, tantas eram as histórias e o cansaço. Antes dessa, a viagem foi comigo e ele perdeu o avião porque enganou-se na data, resolveu voltar de autocarro, mas o cartão de crédito não funcionava (sim, outra vez.) e, pela primeira vez na vida, entrei de pijamas na estação de autocarro para salvar esta alma atormentada que quando me viu com ar de louca saída da cama, meio descalça, meio despenteada, disse: “Ah, esqueci-me de te dizer que o cartão já está ok”.
Agora chegou o dia. Mochila pronta, quase 24 horas de viagem pela frente e um grande ponto de interrogação sobre como serão estas próximas três semanas. É que com ele, nunca se sabe.

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