Lembra-te

Convivo à demasiado tempo com a minha memória de peixe.
Talvez por isso escrevo.
Para não esquecer aquele dia em que cheguei a uma aldeia hostil. Viciados em opio, lixo, ruas de barro e um hotel sem internet. Desconectada do mundo, sem vistas bonitas nem companhia para passar o tempo.
Fui passear. Objectivo: almoço. O primeiro restaurante era sujo e escuro, o segundo, também. Mas foi então que lá ao fundo, na sombra, entre o arroz frito e a Beerlao vi o que parecían ser dois olhos redondos. Duas peles brancas. Duas línguas com letras conhecidas. Westerns?
Aproximei-me com cara de esperança. "Olá", disse no meu melhor inglês, "a comida aquí é boa?", perguntei sem me importar com a resposta. Eles já tinha esvaziado o prato.
O próximo passo era o ataque. "Posso sentar-me com vocês?", propus. "Sim, mas acabamos agora mesmo de comer", disseram. E eu retruquei, enquanto puxava uma cadeira: "Não há problema, eu como rápido".
Passámos a tarde juntos. Até trocámos números de telefone.
Viajar sozinha é isto. Fazer amigos à força. Não ter vergonha. Falar, partilhar e ser, porque não, um pouco egoísta.
Egoísta como naquele dia em que recusei viajar com uma rapariga só porque ela mencionou ter poupado 50.000 euros para esta viagem de 6 meses. Fiz-lhe um adeus com a mão e com um sorriso disse-lhe "see you around". Ela ficou com cara de pendurada. E eu segui o meu caminho com os meus 20 euros diarios.
Viajar sozinha é escolher. Como isso que se dizem dos trabalhadores por conta própria: "fazem o seu horario". Quando troto o mundo sem partner acordo às 6 da manhã e vou para a cama às 9.30. "Fica mais um bocado", pedem. E eu respondo "não". Um não, pela primeira vez, sem remorsos, sem dúvidas, sem "e se...". Não porque não me apetece, porque a viagem é minha e eu faço o que eu quiser.
Um não tão (prazerosamente) egoista.

Voltar

Voltar é dormir de conchinha, é ter chave de casa e um edredon da Minnie no sofá. Voltar é ser recebida com flores, sol, balões e beijos. Não queria voltar mas voltei e bem que gostei.
Gostei de ter um armario cheio, duas escovas de dente e uma parafernália de cremes para o cabelo. Gostei de voltar ao supermercado e comprar comida de verdade.
Porque voltar para casa é cozinhar, ler as noticias, ouvir vozes familiares na radio. Queixar-se do tempo. E ter tempo. Em casa os segundos passam a outra velocidade. Não há um horario para o breakfast, não há pressa para reservar o autocarro, não há chaves na porta do hostel, nem o happy hour das 7 às 9. Aqui a cerveja é quando eu quiser. 
Estar em casa significa ter uma bicicleta. Aulas de italiano e um quarto que faz de ginásio. É sinónimo de ter amigos que duram mais de uma semana. As caras repetem-se uma e outra vez.
A casa cheira a nós e não sentimos cheiro. A cama está amoldada ao nosso corpo. A rotina integra-se com rapidez. As manias retornam e os pensamentos também. 
Voltar a casa é achar inaceitável dormir com baratas, tomar banho de agua fria, ir à praia sem depilação. Quem faz essas coisas? Hoje paguei 20 euros num almoço. Há uma semana paguei 1 e achei caro.
Naquele mundo acordava às seis de manha, neste, faço um esforço para não adormecer antes da uma. 
Voltar é bom o problema é esquecer que fui. 

Eles

A Silvia e o Mauro. O Mike e a Mary. A Liz e o Rô. A Brailey contando do seu trauma da Tansmania. A Rose comendo arroz branco e Coca Cola. A Daisy e o Richard. Ele, com medo de moscas, ela, que depois de conhecer a Mongolia deixou a depilação. A Cris, que abandonou a crise espanhola e pôs a mochila às costas e a Ottavia que reclamava, protestava e criticava mas, no fundo, tinha um coração mole. A Luisa e a sua risada tímida e comentários ingénuos. 


A Vivu, que foi entrevistada mas também amiga. O Henry, a Asha e o Volker que me fizeram sentir em casa, rir até ter lagrimas nos olhos, beber demasiada cerveja, participar em dramas amorosos e considera-los "amigos de verdade". A Rachelle, o Scot, o Harrison, a Amelie, o Tobin e o Marcos que conseguiram que eu acreditasse que outro tipo de familia é possível. 


A Paloma e o Sergio. Outras vítimas da crise com quem partilhei viagem, cervejas e confidencias com selo espanhol. As galesas de quem não decorei o nome. Os alemães do autocarro que não falavam ingles. A Caroline, medica, e com medo da street food; as argentinas peronistas e os Oscar. Foi tão bom reencontra-lo. O Daniel e os seus whatsapps de engate. O Andres, tão inseguro mas que se despia em público com naturalidade. O Chris e a Lee. "Vaya 3", diríamos em España. Un americano com ataques de ansiedade, uma teenager "demasiado madura para a sua idade" e eu. Bombastico.



Depois chegou o grupo do centro. A Detta e o Iupe: o casal zen. Deles invejei a independencia e a calma. Fiz uma nota mental para tentar imita-los. O Jelte e a Lea que entraram rapidamente para lista de favoritos. Com ele viajei de moto, saltei em cascadas selvagens, comi demasiada "passion fruit" e rompi um dos 5 preceitos. "Fazemos só quatro e meio que uma cerveja não faz mal a ninguém", dissemos.



Depois vieron o Luke e a Nina. Ele tão francês, tão olhos azuis, tão coração partido. Ela, que virou amiga e companheira de motorbike, de templos vazios, vistas de perder o fôlego, regateios e todos os night markets que existiam à face da terra. 
E chegou a Birmania e com ela a Sarah e a chuva de Bagan. Descobri o Pedro e recordei como Portugal sempre será "casa".  Deixei-lhe a Emma e o japonês. Ela, londrina do mundo das finanças farta de computadores. Ele... se conseguíssemos entendê-lo poderia contar-vos algo.
Foi então que apareceu o Pablo. "Contigo a conversa nunca acaba", disse-lhe. "Olha que tu", respondeu ele. 


E então falámos horas a fio, conhecemos templos, trabalhamos muito, stressamo-nos, gargalhamos no meio das ruas caóticas de Yangon e comemos rothi. Ele de Longyi e eu de thanaka. 
E para acabar, nada melhor que uma familia: a Lea, o Tim, a Kiki e o Raf. Tão modernos, tão acolhedores, extrovertidos, tão generosos. Tão perfeitos.
Sem ele, sem todos eles, estes dois meses não teriam tido graça nenhuma. 




Os 29 que acabaram em herpes


Disse que queria um dia relaxado. Com amigos, sem autocarros. Com agua quente, sem stress. Num sitio com internet para receber chamadas e o amor que vem do outro lado do mundo.
Disse.
Mas ja aprendi que aqui a palavra não tem valor. O dizer não faz historia. 
Quando me apercebi já tinha rasgado aquele bilhete de autocarro, despedido os planos de um aniversario à beira lago e estava num taxi, as 3 da manha, rumo ao incerto.
Incerto para mim é entrevistar um monge birmano que ameaça musulmanos. Incerto é ver o nascer do sol num carro desconhecido. De pequeno almoço: churros chineses e chá com leite condensado. Incerto é pôr a velocidade a 50, o foco em manual e o papel branco à frente da cara do "bin laden". Incerto é apertar o REC com borboletas no estomago. 
Nessa altura ainda tinha 28.


"O que fizeste no dia do teu aniversario?", perguntam. Caminhar por estradas sem carros, visitar templos vazios, dizer uma e outra vez "esta cidade é absurda". Almocei fruta e jantei pão numa área de serviço. Passei 5 horas num autocarro. No fim da noite, contabilizei. No dia dos 29 recebi cinco chamadas. Não pude conectar o whatsapp nem o Facebook. Os "parabéns" ficaram sem ler nem responder. Não soprei velas nem recebi presentes.
Os 29 começaram na Birmania com tanto stress que acabaram em herpes. Os 29 foram imperfeitos, interessantes, diferentes, desafiantes, intensos e, porque não, históricos.
Quem sabe um principio de um novo ato. 

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