Ganhaste a loteria?

Para todos aqueles que não conseguem resistir ao comentario, aqui vai (de uma vez por todas) a minha resposta.
Sim, vou viajar de novo. E não, não ganhei a loteria. Vou viajar com o dinheiro que poupei não comprando roupas de marca nem carros topo de gama. Vou viajar por todas aquelas vezes que não fui às rebajas, por todos os presentes que fiz e não comprei, por todos aqueles jantares caseiros, pelas botas que duram vários anos e os bikinis também. Pelas vezes que repeti vestido em casamentos e batizados (hereje!). Viajo com o dinheiro de anos trabalhando das 12h às 12h. Andando de bicicleta e não de carro. Com o dinheiro do carro de vendi viajo para longe, bem longe, e gasto o mesmo que tu naquelas ferias em Ibiza. Quando viajo divido quarto, experiencia, banco do autocarro e até almoço. Visito amigos e poupo em alojamento, comida e sorrisos falsos.
Sim, vou viajar outra vez e os voos foram bem baratos (obrigada pela preocupação). Não, nunca traigo "presentinhos" quando viajo. Desculpa. Mas sim traigo (muitas) fotos e acho que é suficiente.
Não sou rica, mas se fosse, ¿o que é que tens a ver com isso?. Não sou rica, e se fosse, talvez não viajasse tanto. Ou não conhecesse tantas pessoas. Ou não tivesse tantas historias.
Sobre a loteria, não, não jogo. Poupo esse dinheiro para a minha próxima viagem.

Capitulo I - Os desconhecidos

Eu, na verdade, nunca gostei muito deles. "Odeio pessoas", costumava dizer. Não gosto dos dramas, das fofocas, do disse que disse o primo do fulano. Em geral, nem sequer gosto do fulano.
Quando comprei aquele bilhete de avião buscava mais a introspecção que as gargalhadas. Ganhei os dois e nem sabia.
Fui porque sim, fui porque fui. Sem mais. Não sei bem o que buscava, porque buscava um pouco de tudo. Desintoxicar. Poder escolher. Se não gosto de ti, oh desconhecido, digo-te adeus, bye bye, I'll see you around. Se gosto, conquisto-te com uma cerveja de 20 cêntimos.
Acho que buscava a simplicidade. O branco e negro dos amigos que não duram mais de uma semana.
Tu sim, tu não. Nós sim, nós não. Gosto disso.
Esta é uma ode aos desconhecidos e às conversas de autocarro. "Eu conheço aquele desconhecido", disse um dia. "Sim, esse que vai com as calças rotas e sem camiseta". Dei-lhe um abraço. Desses que só dão os amigos.

Das rotinas

Quando vivia com os meus pais não tomava café da manhã, almoçava pouco e jantava muito. Víamos televisão na cozinha. Quando era adolescente ligava todas as noites para o meu namorado de turno. Os namorados mudavam, o hábito não. "Mas vocês acabaram de se ver, o que têm ainda para conversar?", me perguntavam. Eu ignorava o comentario e digitava cada noite os mesmos números.
Na Italia, por exemplo, não faltava a nenhuma aula. Saia da discoteca, tomava banho e ia para a faculdade. Dormia nos intervalos, mas não perdi nenhum dia.
Quando morava com a Nonna saia de casa às 7.15, pegava dois ônibus e um metrô. Voltava tarde e cansada mas o meu prato sempre estava no microondas.
Um dia, quando já morava na Espanha, tive saudades do Nonno. Foi então que me lembrei de como ele molhava as bolachas María no café. Eu não gosto de café e adaptei a técnica ao copo de leite. Não é que funcionou? Não tem nada mais reconfortante.
A minha avó, a vovó Leda, me deu um dia um colar. Adorei e coloquei na hora. Não tirei mais. Passaram anos e um dia o colar quebrou. Tive uma crise de ansiedade e liguei para ela: "Vó, está tudo bem? É que o colar quebrou... achei que podía ser um sinal..."
Em Madrid jantava 7 dias por semana quatro torradas com tomate e orégano. Uma baguete de pão durava 2 dois dias e a caixinha de tomate do Mercadona aguentava a semana inteira. Às vezes trazia restos do almoço para casa e jantava duas vezes.
No meu primeiro ano da Coruña só ouvia Bob Dylan. Em Turin chorava ao som de Ana Carolina.
Quando há eleições passo o dia escutando canções revolucionarias.
Durante um tempo corri. Depois nadei. Fui na academia. Fiz spinning. Andei de bicicleta. Fiz exercício em casa. Nunca atingi os meus objetivos. Nunca persisti muito tempo.
Agora acordo todos os dias uma hora antes do resto do mundo só para tomar um chá preto. A partir desse momento, não tenho horarios. Liberdade. "Quero aproveitar o meu tempo livre, quero aproveitar o meu tempo livre", é o mantra que toca en repeat na minha cabeça. E com tanto mantra e tanto tempo, me perdi.
Sem rotina o tempo foge.

A nonna

Ela diz "danguetis" e "service service". "Dais" em vez de "dez" e outro dia pedí um pastel de queijo e ela me trouxe um escrito "cheggio". Essa é a Nonna.
- Agora vou ver o meu programa - ela diz enquanto se deita no seu cadeirão e escuta qualquer entretenimento em italiano. Na verdade, "o meu programa" pode ser um que passe na RAI, mas também serve se ele for apresentado pelo Silvio Santos. 
Novelas, só do SBT. Vinho, com água e, se puder ser, com fruta. Tomate, sem semente. Praia, "só se for para tomar uma agua de coco". Ela não gosta do sol nem do mar. Um trauma depois de um mês num navio. "Uns 20 dias" foi quanto durou o trajeto Italia-Brasil. Uma viagem só de ida em busca de um futuro - e um marido. Ela tinha rejeitado o pretendente americano "porque tinha voz fina" e gostou do Nonno: voz grossa, alto, bonito, mas com um problema: era mais novo que ela. "Não faz mal, eu nunca pareci a idade que tenho", justifica. Nem naquela época, nem agora. 
Tiveram 4 filhos e trabalharam duro. Ele, fazendo sapatos, ela, costurando. Agora "a loja" mudou de geração, mas é ali onde a Nonna passa os seus dias. "Me distrai", explica. Ela gosta de rotinas. Café da manhã às 7.30, no meio da manhã, um chá e o almoço é sempre às 13.30. Segunda feira tem feijão, quinta é dia de macarrão e no sábado não tem comida porque todos pedem pastel. 
- Compra no meu amigo - ela diz, quando sou eu que vou na feira. 
- Mas no teu amigo o pastel não é tão gostoso - respondo. 
- Ah, mas quando eu vou ele me chama "D. Angela, D. Angela" e então eu compro sempre lá. 

Ela é popular. No bairro e na familia. 

Algo que te faça feliz

"Haz lo que sea pero que te haga feliz", me dizem. E eu paro.
Porque há poucos dias, por exemplo, descobri que o surf me faz feliz.
O surf? Quem diria!
Juntei-o então à escrita, às viagens, à cozinha, aos meus cremes naturais e à leitura.
Faz-me feliz tomar chá quando o frio é solarengo, fazer risotto de abóbora com a minha mãe, adormecer no sofá no domingo à tarde. Sou feliz quando vou ao cinema, quando como gomas e quando rego as minhas plantas. Sou feliz comendo pastel da feira com a Nonna, quando ouço a rádio de manhã, quando leio uma reportagem bem escrita quando jogo "buraco" com a Vovó Leda ou quando durmo de conchinha.
Mas há coisas felizes que dão dinheiro?, pergunto.
Porque o meu professor de surf queixa-se do hombro e dos alumos que não se esforçam - tento ignorar a referência. As cafeterias agora vendem tapas de fritura. As lojas de gomas dão caries nos dentes. Os jornalistas já não têm tempo para escrever bem e os feirantes queixam-se da sua vida de  saltimbancos. A minha mãe vive longe da Nonna. A casa da Nonna está a mais de uma hora da Vovó Leda e as três estão a muitos, muitos, muitos kilómetros da minha casa. A minha casa faz-me feliz porque não é trabalho (ou não será assim?) e eu meu trabalho não me faz feliz porque se chama trabalho (ou será que não?).
Sempre que alguém diz que é feliz no seu trabalho, eu penso: "mentes". Não és feliz quando o teu chefe te grita, nem quando não recebes o suficiente. Não és feliz quando tens de trabalhar no sábado e no domingo à tarde, quando o despertador toca às 7 da manhã. Mentes. Ou mentes ou eu estou amargada. Ou mentes ou eu preciso encontrar o que me faz feliz.
Desesperadamente.


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